#24 Ill Na Na: o começo de Foxy Brown
Banner do texto 24 com título ("Ill Na Na: o começo de Foxy Brown") e identificação do Twitter (NEscapism). Foto de fundo: encarte do CD Ill Na Na. |
#24 Ill Na Na: o começo de Foxy Brown
Em 1974, Pam Grier estrelava o filme de ação que apresentava pela primeira vez o arquétipo da mulher negra independente para o cinema. Foxy Brown, que possui como personagem principal uma mulher em busca de vingar a morte de seu namorado, é citado como um dos filmes mais influentes para o gênero que mescla ação com a cultura negra estadunidense urbana. Tanto influente como criticado, o filme faz uso da sensualidade e letalidade como características base do seu personagem principal. De todos os efeitos que o filme causaria na cultura popular, um só seria percebido na década de 90, quando a jovem Inga DeCarlo Fung Marchand, de ascendência trinitária, escolheu a personagem como nome artístico.
Apesar de já ter atingido um patamar admirável só com participações em remixes, Foxy Brown apresentou em 1996 o que seria o ponto de partida do rap feminino naquela época. Junto com Lil' Kim, uma amiga de infância que infelizmente se tornou rival, Foxy Brown é lembrada como um exemplo para mulheres no Hip Hop que desejam ser ousadas nas músicas e celebradas no mundo da moda. No artigo da Complex Music de 2016, Treva B. Lindsey conta como as estreias de 1996 ("Hardcore" e "Ill Na Na") influenciaram o cenário do Hip Hop e sua relação com o rap femino, assim como as controvérsias que as duas obras levantaram na época. O impacto dessa época ainda é discutido nos dias de hoje, mas o que me motivou a escrever sobre Foxy é justamente a falta de seu nome nas discussões.
Eu conheci Foxy através de Nicki Minaj, e assim como ela (que cita a rapper do Brooklyn como uma de suas maiores influências) eu me viciei muito rápido nas habilidades e persona de Foxy Brown. A sua enunciação (ou flow) a tornaram capaz de dominar músicas com colaboradores de peso, e suas letras impressionam pelo impacto que causam ao ouvinte. Apesar de uma mudança no tom de voz ao longo do tempo, a audácia e letalidade de suas letras se mantiveram até seu último projeto oficial em 2003.
Assim, o embrião desse texto nasceu da experiência que foi ouvir as primeiras músicas de Foxy Brown, mesmo que naquela época eu não tenha planejado esse resultado. Como o blog se tornou um espaço aberto para discutir sua carreira, e de muitos outros artistas, acredito que começar com Ill Na Na seria o mais apropriado para essa ocasião. Como a própria disse na entrevista para o programa Rap City em 1996, o álbum é muito bom em representar quem é Foxy Brown no mundo do rap. Com produção integral do grupo The Trackmasters, Ill Na Na teve treze músicas na sua versão original (a resenha nesse texto), mas também é possível encontrar a versão de 1997, que conta com a adição de Big Bad Mama (feat. Dru Hill).
A ideia original era ir de faixa a faixa comentado minhas opiniões mas me deparei com o primeiro ponto negativo de Ill Na Na: ao tentar fazer uma análise faixa a faixa, a repetição de temas é exacerbada e torna desagradável escrever sobre algumas músicas. Tentando evitar o pecado de ser redundante, optei por escrever sobre os temas gerais e mencionar as músicas que mais se destacam segundo a qualidade em questão.
Como característica marcante de Ill Na Na, e um pequeno choque para o ouvinte do presente, temos a presença de uma narrativa que perpassa o álbum todo, algo que se perdeu dos projetos musicais com o passar dos anos. Desenvolvida principalmente em Intro ... Chicken Coop, Interlude ... The Set Up e Outro, seus resquícios podem ser ouvidos em quase todas as músicas presentes. De forma resumida, Ill Na Na conta a história de Foxy Brown como agente do grupo The Firm, que opera nas ruas em um paralelo entre a máfia e as gangues de Nova Iorque. Fora dos versos, a empreitada consiste em um supergrupo de Hip Hop formado por Nas, AZ, Cormega e Foxy Brown (pelo menos até o ano de lançamento do álbum). Além de serem mencionados durante todo Ill Na Na, Foxy Brown se juntou aos outros para lançar em 1997 o próprio projeto do grupo, The Album. Inclusive, The Firm se reuniu recentemente na música Full Circle de Nas (King's Disease, 2020).
Com o pano de fundo estabelecido, o acontecimento principal da história é um assassinato planejado contra um inimigo de The Firm, que também está envolvido amorosamente com Foxy Brown. As letras dão a entender que a prática de montar armadilhas é integral nas operações da rapper, que usa toda a sua sensualidade para obter sucesso. Voltando a crítica, o fato desse ser o motor do álbum não é o problema, já que é muito interessante acompanhar a narrativa e, depois que o incidente acontece, tentar advinhar qual será o próximo passo de Foxy nessa história toda, como se estivessemos vendo um filme com a própria personagem de Palm Grier. O problema é que nunca há um próximo passo. Depois da metade do álbum a narrativa morre em si mesma e só sobram elogios repetidos aos parceiros de grupo. The Chase, por exemplo, é a oitava faixa do álbum e apresenta como tema principal o mesmo que a segunda. Não existe um aprofundamento ou consequências do Interlude ... The Set Up, nem outras ações diferentes. A única progressão da narrativa é a finalização com o Outro.
Falando sobre as falhas do álbum, eu acredito que o segundo problema seja que alguns elementos envelheceram muito mal. Em Foxy's Bells, há o uso do sample de Take Me To The Mardi Gras, de Bob James, e Rock the Bells, de LL Cool J, sendo o último um dos primeiros colaboradores que trouxe atenção a Foxy como artista. Entretanto, a instrumental me deixou cansado depois do primeiro refrão e torna terminar a música quase uma tarefa desagradável. Já em Fox Boogie, a participação de Kid Capri no refrão chega a ser irritante no final da música, o que me diz que o estilo de refrão não traduziu muito bem atualmente como eu imagino que deva soar no final do século passado. Além de partes inteiras das músicas, pequenos versos também deixaram um gosto amargo na boca, como o uso de gírias homofóbicas em (Holy Matrimony) Letter To The Firm e a menção honrosa a R. Kelly (?) em No One's.
O próprio fato de quatro músicas do álbum nem possuírem créditos de escrita a Inga Marchand pode ser considerado um fator negativo, já que coloca em questão a credibilidade da persona construída. Seria Foxy Brown um desenvolvimento natural da personalidade de Inga no Hip Hop ou só mais um produto de JAY-Z e Trackmasters, como as músicas em si? Felizmente seus próximos lançamentos dão dicas da resposta. Ao mesmo tempo, infelizmente, essa dúvida também serviu para alimentar o estereótipo falso e machista de que as mulheres não conseguem escrever suas próprias rimas. Suposição essa que eu espero que morra logo (já estamos em 2020 galera).
Mas o que sobra de positivo então?
Ill Na Na contém elementos muito fortes, que para mim são os responsáveis pelo sucesso que ele alcançou. A personalidade irreverente e sensual de Foxy Brown é um dos pontos altos do CD, assim como a sua habilidade enorme em rimar. O flow de Brown em diferentes músicas é impressionante e merece ser considerado um dos melhores, principalmente por vir de uma jovem tão talentosa. A produção do álbum também merece destaque por apresentar uma fusão impecável de samples de R&B em um disco de Hip Hop. Passando pelas minhas favoritas, podemos ver diferentes pontos altos da rapper.
The Promise, com a participação e produção de Havoc, demonstra que Inga é tão capaz de escrever suas próprias letras quanto qualquer um. A atmosfera da música consegue transmitir determinação e Hip Hop cru, impressionando mesmo sem superprodução. Ela conta com versos que descrevem o tom do projeto, como "Who be the mahogany mami, the slanted eyes" e "The Firm's baby girl, my fam be my whole world", e mostra qual é a da moça que impressionou milhares com seu desempenho em Ain't No (Reasonable Doubt, 1996). Já If I ... toma uma trajetória diferente, expressando o lado sensível e vulnerável de uma mulher independente, que sofre com questões amorosas e a falta de honestidade com seu parceiro. Por ter ascendido em uma velocidade rápida, Foxy contempla o que mudou em sua vida e como gostaria de poder voltar aos momentos bons antes que a fama interviesse nas suas relações.
A faixa título do álbum, com a participação de Method Man, é uma das minhas favoritas de toda a carreira da artista. Explorando o apelido dada a Brown por Nas, Ill Na Na fala sobre a vida que a jovem rapper leva, sem se preocupar com a aprovação masculina sobre a sua arte e como leva a sua vida. Mesmo não tendo créditos como escritora, ela consegue incorporar as rimas feitas sobre medida para expressar como ela é tão livre quanto os homens que compartilham sua posição. Uma das minhas partes prediletas, e também mais comentadas, é o verso que indicava a proximidade na época com Lil' Kim: "waiting for Kim's album to drop, knowing it's tight" (amizade essa que não sobreviveu a pressão da indústria). Também queria destacar os conselhos maternos no final da música, que transmitem uma preocupação de Brown com outras jovens mulheres. A produção da faixa título, bem simples e efetiva, contrasta muito com o single mais importante do álbum, sua parceria com JAY-Z (mais um atestado de que como a artista consegue se manter no ritmo independente do tipo de instrumental). I'll Be representa o apelo comercial de Foxy, ao ter alcançado a #7 posição na Billboard Hot 100, e ainda possui o mesmo efeito de levantar o astral. Com uma troca de energia intensa entre os dois, a música explora a parte sexual do arquétipo encarnado por Foxy Brown, sempre em busca do prazer independente da opinião alheia.
Por fim, Ill Na Na é um álbum extremamente divertido de se ouvir e demonstra as habilidades incríveis da então novata Foxy Brown. Entretanto, uma parte considerável dele não foi escrita por Foxy Brown, o que pode colocar em dúvida a autenticidade de sua persona, principalmente levando em consideração a situação das mulheres no Hip Hop naquela época.
Apesar disso, o maior problema que eu tenho com o álbum é a falta de progressão de sua narrativa, justo um de seus pontos mais positivos. Para a minha felicidade, o CD também possui muitos outros atrativos, que solidificam Ill Na Na como um projeto marcante para o Hip Hop no geral. Seus acertos são tão potentes que me espanta ela não estar presente nas discussões sobre a formação do rap feminino. Ill Na Na foi um marco nos anos 90 e celebrar seus sucessos é entender como o gênero musical chegou onde estamos agora.
Bibliografia utilizada:
Foxy Brown (1974) (eng) - https://www.imdb.com/title/tt0071517/?ref_=nm_flmg_act_92 ; https://en.wikipedia.org/wiki/Foxy_Brown_(film) ;
Ill Na Na (1996) (eng) - https://en.wikipedia.org/wiki/Ill_Na_Na ;
Now Watch Mama: Lil' Kim, Foxy Brown, and the Rise of the Female MC (eng) - https://www.complex.com/music/2016/02/lil-kim-foxy-brown-debut-albums-female-mcs ;
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